Por Müller Dantas de Medeiros/ ConJur
“As salsichas e as leis, é melhor não saber como são feitas.” A afirmação (erroneamente) atribuída a Otto von Bismarck ilustra uma característica marcante do processo legislativo de sua época: a falta de transparência. O autor do aforismo — quem quer que seja — buscava com ele traduzir a ideia de que a opacidade do processo de produção de leis decorria em grande medida de sua típica “impureza”: ocultação dos acordos políticos e interesses pessoais que influenciavam as deliberações parlamentares.
Particularmente, nunca gostei das salsichas. Passei a evitá-las terminantemente após descobrir que causam câncer. A salsicha é feita de sabe-se lá que partes de sabe-se lá que animais (até mesmo jabutis!), moídas com gorduras e temperos, e embutidas num envelope comestível. Assim também o eram as leis no tempo de Bismarck: elaboradas a partir de sabe-se lá quais informações, prestadas por sabe-se lá quais atores, e preparadas sabe-se lá de que maneira.
Passados mais de um século desde o falecimento do ilustre chanceler, percebe-se (felizmente) que a analogia se revela (ou pelo menos deveria revelar-se) um tanto anacrônica. Nesse início de século 21, não mais se admite, no trato da coisa pública, a opacidade que o caracterizava. Agora, são exigidos do poder público a obediência a uma série de deveres de viés moralizante, como a publicidade e a transparência administrativas — alçadas ao patamar de princípios basilares do sistema jurídico-administrativo brasileiro.
Esses novos deveres não passaram ao largo dos olhares do Poder Legislativo. O processo legislativo dos parlamentos contemporâneos vem gradativamente se afastando da opacidade (e, oxalá, também das “impurezas”) que o assemelhava à produção de salsichas. O aumento da transparência das deliberações não significa o fim das decisões a portas fechadas — isso tampouco é uma pretensão da nossa ciência. As boas práticas da legística, o incremento do conteúdo informativo e de sua publicidade propugnam, porém, que as razões que fundamentam as decisões legislativas sejam, elas também, públicas.
Quanto mais transparente se torna o procedimento de elaboração normativa, tanto mais inapropriado se revela a (falsa) citação.
Retiremos, pois, a salsicha da comparação.
Coloquemos, em seu lugar, os sanduíches.
Diferentemente das salsichas, os sanduíches não são feitos de suspeitosas partes animais processadas até se transformar em uma massa semi-homogênea. Ao contrário, os sanduíches são “transparentes”: nos permitem identificar claramente todas as camadas que (necessariamente ou não) lhe constituem — o pão, a carne, o queijo, o molho, a alface, o tomate… Diversamente daquelas, eles possibilitam ao apreciador conhecer melhor sua qualidade, assim também questionar a razão pela qual cada um de seus componentes foi inserido à receita.
As leis do século 21 se destinam a tratar de problemas notavelmente multidimensionais surgidos no seio de uma sociedade fadada a uma paulatina complexidade. O legislador contemporâneo já superou o ideal positivista-legalista, segundo o qual a força da lei decorria exclusivamente de sua adequada colocação no sistema normativo. A legitimidade das leis, no Direito atual, encontra-se também intrinsecamente atrelada ao seu conteúdo e às razões do legislador.
Se “antes de redigir a lei, é preciso pensá-la”, como afirma Delley, tem-se como primordial a necessidade de se prover o legislador com as informações e dados indispensáveis ao desenvolvimento desse processo legislativo, marcado pela racionalidade. As leis requerem, portanto — sem descuidar de seu inerente caráter político —, ser elaboradas com cuidado científico e significativa transparência.
A legística tem com um de seus objetivos primordiais o fornecimento de informações adequadas, suficientes e de qualidade, a serem utilizadas como subsídio do processo de elaboração normativa. O legislador do século 21, dessa forma, encontra-se fortemente adstrito ao conhecimento gerado no seio da sociedade. Diga-se de outra forma, o processo de tomada de decisão legislativa tem se tornado paulatinamente mais racional e baseado em evidências.
As leis do nosso tempo precisam demonstrar de que são feitas, quais seus ingredientes — quais informações e razões as integram, fundamentam, embasam. Diferentemente das salsichas, sua constituição não pode ser obscura. Os legislados do nosso século querem conhecer não apenas os ingredientes das leis, mas igualmente os motivos pelos quais cada um deles foi utilizado em sua fabricação. Como o fazem ao encomendar seus sanduíches.
Daí a crescente importância dada pelos parlamentos a ferramentas como as consultas e audiências públicas, cada vez mais utilizadas como forma de captar as vozes da sociedade e legitimar o processo legislativo. Essas ferramentas têm se mostrado essenciais para a obtenção de informações relevantes e representativas, permitindo que os legisladores tomem decisões embasadas em evidências consonantes às demandas sociais. As consultas à sociedade civil possibilitam o envolvimento dos cidadãos no debate sobre questões legislativas, trazendo à baila diferentes perspectivas sobre os assuntos em discussão. Já as audiências públicas proporcionam um espaço para o diálogo direto entre os legisladores e os diversos setores da sociedade, viabilizando o compartilhamento de conhecimentos técnicos, experiências e preocupações relacionadas ao objeto da deliberação parlamentar.
Todavia, percebe-se que outras ferramentas não menos relevantes para esse desiderato — como as avaliações legislativas e o desenvolvimento da política de dados oficiais —, nada obstante seu enorme potencial informativo, têm sido deixadas em segundo plano, mormente em países que enfrentam um desenvolvimento atrasado, como é o caso do Brasil.
A avaliação legislativa consiste em analisar os impactos e os resultados das leis em vigor, permitindo uma reflexão sobre a eficácia, a eficiência e a adequação das normas existentes. Ela auxilia na promoção da transparência, da accountability e da melhoria contínua do processo legislativo, garantindo que as leis atendam às necessidades da sociedade e sejam efetivas na consecução dos objetivos pretendidos.
Já a política de dados oficiais refere-se à coleta, análise e disponibilização de informações e estatísticas relevantes pelo poder público. Apresenta extrema importância para o processo legislativo atual, visto que, ao disponibilizar aos legisladores dados oficiais confiáveis, fornecem um substrato informacional sólido, que contribui para a fundamentação e aprimoramento das proposições legislativas. Um desafio enfrentado no contexto atual é a falta de atualização dos dados oficiais devido à não realização do Censo em 2020. Essa lacuna na coleta de informações demográficas e socioeconômicas acarretará consequências diretas para as avaliações legislativas nos anos vindouros, sobretudo no que se refere às políticas públicas.
A falta de informações demográficas precisas e atualizadas prejudica a compreensão das demandas e necessidades da população, dificultando a formulação de políticas públicas adequadas e eficientes. Os dados demográficos são fundamentais para identificar grupos populacionais específicos que podem demandar atenção especial, como crianças, idosos, pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, entre outros. Sem essas informações atualizadas, o legislador enfrenta dificuldades para tomar decisões informadas e direcionar os recursos com eficiência.
Além disso, a falta de dados oficiais atualizados também pode comprometer a avaliação dos resultados das políticas públicas em termos de equidade e justiça social. A ausência de informações demográficas precisas dificulta a identificação de desigualdades e disparidades existentes na sociedade, impedindo uma análise aprofundada dos efeitos das leis sobre diferentes grupos e regiões. Isso pode resultar na perpetuação de desigualdades e na falta de medidas corretivas para promover a inclusão e a igualdade de oportunidades.
Legislar sem dados, sem informações, é como legislar às cegas. Ou legislar no escuro. O processo legislativo precisa se basear em dados confiáveis, informações relevantes e razões transparentes. Daniel P. Carpenter aborda com maestria essa questão em seu livro “Legislating in the Dark“, obra na qual perquire os desafios e as consequências de decisões legislativas tomadas sem um sólido embasamento informacional. Formulando sua perspectiva a partir da análise das interações parlamentares presentes na House of Representatives dos Estados Unidos, o autor oferece insights valiosos sobre a importância do acesso a informações adequadas e do uso de evidências para orientar o processo de elaboração de leis.
Voltando à nossa sugerida analogia, “legislar no escuro” seria o equivalente a saborear um sanduíche sem conhecer seus ingredientes. Da mesma forma que cada componente de um sanduíche contribui para seu conjunto de sabores e texturas, as informações e razões desempenham um papel essencial na formulação das leis. Assim como a seleção adequada de ingredientes permite a criação de um sanduíche equilibrado e agradável ao paladar, a escolha criteriosa das informações e dados que subsidiam as leis resulta em normas mais justas e eficazes.
As normas ganham legitimidade e efetividade ao serem embasadas em informações e dados adequados. A transparência na divulgação das informações que fundamentam a decisão legislativa permite aos legisladores e aos cidadãos compreenderem a base informacional das leis, fomenta a participação cidadã e o engajamento no processo de produção de leis, e enriquece o debate público. A transparência fomenta um ambiente propício para a construção de um sistema normativo mais equilibrado, coerente, racional e eficiente – harmônico como um sanduíche. Sua ausência é altamente prejudicial à qualidade do processo legislativo – como as salsichas à nossa saúde.
Que nossos legisladores sejam, portanto, verdadeiros “chefs” legislativos — elaborando leis como sanduíches bem montados, com ingredientes selecionados, sabores equilibrados e um punhado de transparência. Assim, poderemos apreciar uma legislação saborosa e satisfatória, que atenda às necessidades da sociedade e promova um sistema jurídico-administrativo mais saudável e eficaz.
Müller Dantas de Medeiros é assessor técnico-legislativo da Mesa Diretora do Senado, graduado em Direito, mestre em Gestão Pública pela UFRN, especialista em Poder Legislativo e Direito Parlamentar pelo ILB-Senado e doutorando em Direito pela UFMG.