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Por Vonúvio Praxedes
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Da tentativa de golpe à reação inédita: por que a prisão de Bolsonaro e militares marca a história?

Análise dos dados globais sobre golpes ajuda a entender a gravidade dos eventos recentes no Brasil e o significado inédito da punição de líderes civis e militares

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Por Adailson Pinho de Araújo e Paulo César Rebouças Torquato Filho

Tentativas ilegais e abertas pelos militares ou outras elites dentro do aparato estatal para depor o Poder Executivo em exercício”. Essa é a definição clássica dos cientistas políticos Jonathan Powell e Clayton Thyne para golpe de Estado. É um conceito minimalista, criado justamente para diferenciar o golpe de outros eventos políticos extremos, como guerras civis, revoltas populares ou assassinatos políticos.

Nos últimos anos, o interesse por esse tema ganhou densidade, sobretudo diante do declínio de diversos índices democráticos em escala global. A polarização política intensificada na última década contribuiu para a politização das instituições e para o aumento da violência política, fatores que podem desencadear golpes de Estado ou tentativas. 

Do mesmo modo, a ascensão de lideranças populistas e carismáticas ao longo da última década insere-se no debate global sobre o declínio democrático e a erosão da institucionalidade em diversos países, como El Salvador, Venezuela, Hungria e Guiné-Bissau. No caso brasileiro, o histórico de golpes de Estado confere especial relevância a essa discussão, que ganhou novo fôlego diante da prisão inédita de um ex-presidente da República e de militares de alta patente pela tentativa de golpe de Estado articulada no contexto das eleições de 2022.

Quantos golpes ocorreram nos últimos anos no mundo? 

Ao tentar sistematizar esses eventos, pesquisadores do Centro Cline da Universidade de Illinois criaram o Coup d’État Project, dedicado a registrar globalmente golpes de Estado, sejam eles bem-sucedidos ou fracassados. O banco de dados do projeto cobre eventos golpistas de 1945 a 2024.

O Centro Cline adota uma definição mais abrangente para o fenômeno em comparação a Powell e Thyne: golpe de Estado é um “esforço organizado para efetuar a remoção repentina e irregular (ou seja, ilegal ou extralegal) da autoridade executiva vigente de um governo nacional, ou para destituir as autoridades dos escalões mais altos de um ou mais ramos do governo”.

Para um evento ser classificado como golpe de Estado, alguns critérios precisam ser cumpridos, segundo o Centro Cline:

  1. Deve haver pessoas identificáveis iniciando o golpe.
  2. O alvo precisa ter controle significativo sobre a política nacional.
  3. Deve existir uma ameaça concreta à permanência desses líderes no poder.
  4. O uso de meios ilegais ou irregulares para tentar remover, neutralizar ou depor o alvo.
  5. A ação deve ser organizada.

Assim, os eventos golpistas são classificados em três categorias principais: conspirações (planejamentos frustrados antes da execução), tentativas (ações que falham em depor a autoridade) e golpes consumados (quando a autoridade é efetivamente removida).

No caso brasileiro, os eventos mais recentes foram classificados pelo Centro Cline como conspirações (duas, em dezembro de 2022) e como tentativa de golpe (8 de janeiro de 2023, quando apoiadores bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília). Outros episódios do passado, como os de 1945, 1954, 1955, 1961, 1964 e 1969, são considerados golpes consumados, enquanto 1959 e 1963 entraram na lista de tentativas de golpe.

De fato, a história republicana brasileira convive com rupturas da ordem constitucional desde sua origem, em 1889. A primeira tentativa de golpe identificada pela literatura jurídico-historiográfica é atribuída ao Marechal Deodoro da Fonseca. Em 3 de novembro de 1891, o presidente editou um decreto executivo que dissolveu o Congresso Nacional, reagindo à intensa oposição política que ameaçava a sustentação de seu governo. A medida perdurou por 20 dias e somente foi encerrada com a sua renúncia, em 23 de novembro daquele ano.

A análise desses episódios ao longo da história evidencia distintos graus de resistência, ou de fragilidade, das instituições republicanas. O golpismo no Brasil, recorrentemente, esteve associado a pactos políticos majoritários que, por meio da anistia, reconfiguraram relações de poder e neutralizaram a responsabilização dos envolvidos. Essa lógica, observada em diferentes momentos da República, produziu ciclos de impunidade que contribuíram para preservar, no interior da institucionalidade brasileira, um permanente germe golpista.

Como o fenômeno se transformou no tempo?

Para compreender como esses eventos se distribuíram historicamente, é útil observar o padrão anual global de conspirações, tentativas e golpes consumados. O gráfico abaixo apresenta essa distribuição entre 1945 e 2024, a partir dos dados do Cline Center. 

Há um aumento expressivo de eventos entre as décadas de 1960 e 1980, auge das intervenções estatais irregulares, em um contexto de Guerra Fria, descolonização e instabilidade institucional em vários continentes. Depois desse período, há uma redução gradual e posterior estabilização em níveis mais baixos a partir dos anos 2000. Nos últimos anos aparece alguma oscilação, mas não em intensidade comparável ao auge observado no passado. A partir de 2020, percebe-se um leve aumento de todos os tipos de eventos, o que também repercute no Brasil.

O papel dos militares

Após observar a evolução histórica dos eventos golpistas ao longo do tempo, é possível examinar um aspecto específico que ajuda a compreender quem participa dessas ações. O gráfico seguinte compara a presença ou ausência de participação militar em conspirações, golpes consumados e tentativas no mesmo período do gráfico anterior. 

Os dados evidenciam que as conspirações envolvem militares em cerca de metade dos casos (48,5%), mas a presença deles aumenta nas tentativas (63,6%) e golpes consumados (cerca de 60%). Isso indica que, quanto mais próxima da execução prática, maior a probabilidade de envolvimento das Forças Armadas.

No Brasil, o padrão identificado nos dados globais reaparece de maneira consistente. Todas as rupturas classificadas como golpes de Estado no período analisado pelo Centro Cline envolveram militares, assim como as tentativas registradas antes de 2023. Isso evidencia que a atuação das Forças Armadas não foi episódica, mas parte de uma prática que se repetiu em momentos decisivos da vida institucional do país ao longo da história.

O que mudou com os eventos recentes no Brasil? 

A novidade dos últimos anos está justamente na reação institucional: a prisão de um ex-presidente e de militares de alta patente por envolvimento em tentativa de golpe marca um divisor de águas. Historicamente, o Brasil conviveu com a impunidade das autoridades envolvidas em rupturas institucionais, muitas vezes amparadas por leis de anistia.

Agora, ao reconhecer e punir essas ações como crimes contra o regime democrático – com condenações e prisões após processos legais regulares –, o Estado brasileiro sinaliza uma mudança na resposta: a ruptura da ordem constitucional não é mais tratada como algo inevitável ou perdoável, mas como violação grave ao próprio regime democrático. 

Assim, a responsabilização de agentes políticos e militares indica a crescente resiliência das instituições brasileiras. Soma-se a isso a revogação da antiga Lei de Segurança Nacional e a consequente incorporação, ao Código Penal, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, movimento que posiciona o Brasil entre os países com os mecanismos mais sofisticados de proteção à ordem democrática. Nesse contexto, o país passa a ocupar um novo lugar na história, marcado pelo fortalecimento institucional e pela afirmação de valores democráticos.

Autores e ordem de autoria: 

Adailson Pinho de Araújo
Professor de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

Paulo César Rebouças Torquato Filho
Mestrando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

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